Adoração Bíblica

Dr. Russel P. Shedd

Sociedade Religiosa Edições Vida Nova
Copyright © 1987 – S.R. Edições Vida Nova
Primeira edição: junho de 1987
Reimpressão: agosto de 1991

O VOCABULÁRIO BÍBLICO pág 17

O VOCABULÁRIO BÍBLICO
Se queremos alcançar uma visão da adoração neo-testamentária, urge examinar os termos usados pelos escritores bíblicos.

Adorar Significa Render-se
O N. T. destaca a palavra “adorar” (proskuneō e suas cognatas – 58 vezes), entre cinco mil termos relacionados com o culto. Originalmente significava “beijar”. Entre os gregos era um termo técnico que significava “adorar os deuses”, dobrando os joelhos ou prostrando-se. Beijar a terra ou a imagem, em sinal de adoração, acompanhava o ato de prostrar-se no chão. Colocar-se nessa posição comunicava a idéia básica de submissão. O gesto de curvar-se diante de uma pessoa e ir até o ponto de beijar seus pés, quer dizer. “Reconheço a minha inferioridade e a sua superioridade; coloco-me à sua inteira disposição”.
“Adorar” (proskunein) foi utilizada para traduzir a palavra hebraica shachah na Septuaginta (a Bíblia grega de Paulo e o autor de Hebreus), e também transmitia o mesmo conceito. Com este termo, Jesus anulou a validade do culto tradicional da mulher de Sicar e seus conterrâneos samaritanos. Tanto o local como a preocupação com o templo não tinha mais importância alguma. Enquanto a mulher argumentava que era o monte Gerezim (local perto de Sicar onde durante séculos passados os samaritanos adoravam e ofereciam seus sacrifícios), Jesus declarou que somente “em espírito e verdade” os verdadeiros adoradores adorarão o Pai (Jo 4.23). A salvação vem dos judeus, (provavelmente as numerosas profecias do A. T. a seu respeito estavam sendo indicadas pelo Senhor) portanto eles adoraram o que conheciam. A revelação do A. T. foi dada a Israel (cf. Rm 9.4). Os samaritanos, como os atenienses (At 17.23), adoravam um deus desconhecido.
Mais do que inútil é o culto que desconhece Aquele a quem devemos submissão e lealdade. Por isso, o grau de beleza de um culto, o número de adeptos, ou a sua antigüidade, não tem importância se o adorador não estiver em contato vital com o Deus único. O quadro que o profeta João desvendou da adoração celestial no Apocalipse, mostra vinte e quatro anciãos caindo prostrados diante d’Aquele que estava sentado no trono (Ap 4.10). Põe em relevo a posição física daquelas personagens misteriosas para frisar a majestade de Deus e manifestar a disposição delas para executar toda ordem de Deus.
Satanás quis que Jesus o adorasse no deserto da Judéia (Mt 4.9, 10; Lc 4.7, 8), porque ser adorado é o supremo desejo do chefe do mal. O diabo, de bom grado trocaria todos os reinos do mundo e a glória destes por um simples ato de adoração (proskunēsis) oferecido por Jesus. Mas, para o Senhor, um gesto de culto não podia ser desvinculado da própria adoração. Ele não acata a idéia de que um ato externo podia deixar de ser também um ato interno, uma atitude de entrega total. Por isso, sua resposta à serpente foi: “Ao Senhor, teu Deus adorarás, (proskunēsis) e só a ele darás culto (latreuseis) (Mt 4.10), e assim encerrou a questão para sempre. Adorar o inimigo de nossas almas ou um dos seus representantes significa render-se a ele.

Adorar Significa Servir
O culto implica também em serviço (latreia) usado por Jesus para responder ao diabo (Mt 4.10). Este segundo termo é empregado freqüentemente na Septuaginta (90 vezes), especialmente em Êxodo, Deuteronômio, Josué e Juízes, mas apenas uma vez nos profetas (Ez 20.32). Moisés, várias vezes, pediu a permissão da parte de Faraó para deixar os israelitas partirem para servir (latreuein) a Deus. Trata-se de cultuar e oferecer atos de adoração que agradem ao Deus da aliança (Ex 4.23; 8.1; 20; 9.1).
O significado central deste termo surge de latron {“ordenado”, no grego secular foi usado para indicar um trabalho pago e, mais tarde, um trabalho não pago). Mantém a idéia de servir. Tanto no A.T. como no N.T. a relação entre o homem e Deus não deixa de ser a de servir como escravo (ābad em hebraico; douleuō em grego). Na carta aos Hebreus, que tem uma ligação mais estreita com o A.T., quatro referências (das seis) tratam do culto judaico no templo, (At 8.5; 9.9; 10.2; 13.10). Nos outros dois casos, notamos que a razão pela qual Jesus se ofereceu por nós foi para que tenhamos consciências limpas, para podermos servir (latreuein) ao Deus vivo (9.14). Hebreus acrescenta que somente os que “têm graça” (lit.12.28) podem agradar a Deus pelo seu “serviço”, oferecendo culto com reverência e santo temor. A profetisa Ana, uma viúva de 84 anos, servia (latreousa) ao Senhor no templo, numa adoração de jejuns e orações, noite e dia (Lc 2.37).
Com muita naturalidade, Paulo emprega latreia, “culto”, “serviço religioso”, para descrever o corpo entregue a Deus como sacrifício vivo, santo e agradável (Rm 12.1). Veremos, a seguir, como o culto relacionado com o templo e sacrifícios no A. T. foi transformado em adoração consumada pelo sacrifício de Jesus Cristo.
Somente pelas misericórdias de Deus podemos oferecer tal adoração que agrade a Deus.7 A vida corporal representa toda a potencialidade e a capacidade do homem, inclusive sua inteligência, energia, experiência e dedicação. Uma vez ofertado integralmente, o corpo santificado como sacrifício a Deus, será aceito como culto genuíno (gr. logikēn).8
Reconhecemos a raiz de latreia em nosso vocábulo “idolatria” (serviço a um ídolo). Foram os israelitas rebeldes que cultuaram (latreuein) as hostes do céu (At 7.42). Espíritos rebeldes (demônios) dão realidade ao culto a ídolos, que em si, nada são (I Co 10.19). Deus revela Sua ira contra todos os que idolatram a criatura mais do que o Criador (Rm 1, 25). O Senhor reivindica a totalidade do “serviço” (latreia) dos seres a quem Ele dá vida A rebelião do pecado humano enquadra-se nesta realidade: o homem serve no sentido de adorar (la-treuein) o que não é Deus.
João nos proporciona uma descrição da multidão que veio da grande tribulação, tendo purificado suas vestes no sangue de Jesus. A atividade da referida multidão extra-terrestre concentra-se numa frase: “servem ou adoram a Deus (latreuousin) de dia e de noite” (Ap 7.15). E possível que este vocábulo inclua mais do que cantar ao acompanhamento de harpas (Ap 14.2, 3), sendo que latreia significa “o serviço religioso” todo, em volta do templo e seus ritos (Rm 9.4). Mas nunca devemos esquecer a exclusividade, pois Jesus declarou: “Só a ele (Deus) darás culto” (latreuseis, Mt 4.10; Lc 4.8). Os atos e ritos que expressam adoração devem ser exclusivamente dirigidos a Deus. Inadmissível ao Senhor da Glória seria um culto prestado aos ídolos por um cristão, mesmo que este afirme que em seu coração está realmente adorando ao Deus único (1 Co 10.20).
Concluímos que o requisito de sacrificar o corpo inteiro do cristão torna seu culto (latreia) genuíno (logiken, “espiritual”, “verdadeiro”, “essencial”; Rm 12.1), na proporção que o Deus vivo é o único alvo da oferta. Dividir a lealdade, na tentativa de servir a dois senhores, deve ser reconhecido como “culto falso” (cf. Mt 6.24).

Atos de Reverência
Em terceiro lugar, o N. T. utiliza o vocábulo sebein (reverenciar), tendo em sua raiz o misterium tremendum. O terror do Senhor impele o pecador a afastar-se, com temor da majestade divina. As palavras que derivam desta raiz (seb), são muito freqüentes na língua grega, fora da Bíblia.9 Transmitem o quadro característico do grego como homem religioso devotado a seus deuses para evitar as nefastas conseqüências do azar (cf. At 17). A conotação religiosa grega impediu que estes vocábulos fossem muito usados para designar o culto, na tradução do A. T. (a Septuaginta).
Também no N. T. este grupo de palavras é bem raro. Mateus e Marcos citam a versão grega de Isaías 29.13 (LXX): “Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mt 15.9; Mc 7.7). Em Romanos, tanto sebazomai como latreuō são empregados paralelamente para apontar a religiosidade dos pagãos, “adorando e servindo a criatura, em lugar do Criador” (1.25). Nas Epístolas Pastorais e 2 Pedro, encontramos uma freqüência bem maior destas palavras, anteriormente evitadas por causa do seu contexto pagão. Sem dúvida, elas já não tinham a idéia de religião popular, mas traziam um novo conteúdo.
João mostra qual seria esse conteúdo: “Sabemos que Deus não atende a pecadores, mas pelo contrário se alguém teme a Deus (theosebēs) e pratica sua vontade, a este atende” (Jo 9.31). Adoração requer uma reverente preocupação com o que agrada a Deus. Viver para o diabo, despreocupado se nosso Pai aceita ou não nosso comportamento, não pode ser a atitude do verdadeiro adorador. Por isso, asebeia (“impiedade”, “irreligiosidade”) é posto lado a lado com injustiça (cf. Rm 1.18). Impiedade refere-se à falta do reconhecimento de Deus em toda a Sua majestade e santidade. Injustiça trata da violação dos padrões impostos por Deus.10 Os que, por outro lado, “querem viver piedosamente (eusebos) em Cristo Jesus serão perseguidos” (2 Tm 3.12). Conseqüentemente, devemos reconhecer que a vida de temor a Deus11 não pode ser isolada duma piedade (eusebia) prática de seguir a Cristo. Como não vale qualquer culto separado do sacrifício do Filho, o temor verdadeiro tem aceitação unicamente no Senhor Jesus.

Adoração e Religião
Em quarto lugar, podemos avaliar o termo threskeia, que só aparece quatro vezes no N. T. e pode ser entendido como “religião” (cf. At 26.5). Não há grande diferença entre o sentido deste vocábulo e o de latreia, sendo que ambos tratam do culto oferecido a Deus ou a anjos (Cl 2.18), na sua expressão externa Seria de se esperar que Tiago, com sua preocupação com a integridade da vida religiosa, não admitisse qualquer dicotomia entre a adoração (threskeia) nas reuniões da igreja e o uso da língua (1.26). Aquele que afirma saber cultuar a Deus de modo verdadeiro também se preocupará com “órfãos e viúvas nas suas tributações”. Evidentemente, Tiago não era promotor de uma religião de mosteiro, desvinculado da preocupação com os sofrimentos do
Corpo. Quem tem um olho desvendado para contemplar a grandeza de Deus, terá o outro cheio de lágrimas pelos miseráveis e desesperados. Religião verdadeira, enfim, não difere de adoração verdadeira; não obstante o N. T. estabelecer critérios para julgar suas expressões concretas de acordo com o que Deus deseja Finalmente, devemos notar que, ainda que este termo frise religiosidade zelosa (At 26.5), Tiago adverte: se não nos aproximamos do nosso próximo, não nos aproximamos realmente de Deus.

Adorar Significa Realizar Serviço Sacerdotal
Em último lugar, analisaremos leitourgeō, composto de duas palavras gregas, “povo” (laos) e “trabalho” (ergon). Significava originalmente fazer trabalho público, mas pagando sozinho as despesas.12 Cidadãos com renda acima de um nível estipulado eram obrigados a gastar seus próprios recursos em serviço religioso. Também um ateniense rico podia cumprir tais obrigações voluntariamente, por um motivo patriótico e religioso ou à procura de reconhecimento. Passou de origem secular para o religioso, de modo que os tradutores do A. T. também usaram freqüentemente este termo, para indicar o ministério sagrado dos sacerdotes.13
O alto privilégio de Zacarias de ministrar no templo foi chamado de leitourgia por Lucas (1.23). Podia ser usada para indicar o serviço de sacerdotes ao aspergir o sangue na tenda e utensílios, no templo. O autor de Hebreus chama este ato de “liturgia” (9.21). Os sacerdotes judeus apresentavam-se diariamente para “exercer o serviço” (leitourgon) no sentido de oferecer os sacrifícios. Mas tudo isso foi superado no “serviço” de Deus, o verdadeiro Sumo Sacerdote do santuário celestial (Hb 8.2), chamado leitourgos (ministro sagrado).
Uma vez que Paulo reconheceu que a Igreja era o “templo de Deus”, era natural que ele se descrevesse como ministro missionário com a palavra leitourgon (Rm 15.16). O anúncio do evangelho e todo o serviço pastoral de Paulo tinham o objetivo de apresentar as igrejas por ele fundadas como oferta aceitável a Deus (Rm 15.16). Os cinco líderes da igreja de Antioquia serviam (leitourgountōn)) ao Senhor por intermédio de oração, jejum e provavelmente no ensino à igreja (At 13.2). Mas a obtenção de fundos para os carentes da igreja de Jerusalém chama-se leitourgia (2 Co 9.12). O auxílio que Epafrodito trouxe de Filipos a Paulo, que sofria na prisão (Fp 2.25, 30; cf.2.17), teve sua fonte no amor prático e sacrificial de Jesus Cristo, que “obteve o mais excelente ministério” (leitourgia) (Hb 8.6). Assim os cristãos também exercem uma “liturgia” quando servem seus irmãos, motivados por amor a Deus. Por meio deste termo, o N. T. mostra novamente o que é adoração genuína Quem “serve” a Deus (At 13.2), serve à igreja e vice-versa.

NOTAS
NDITNT, vol III, p.337.
Esta palavra, com suas variadas formas, aparece 10 vezes nos versículos de Jo 4.20-24.
NDITNT, vol III, p.338. Este vocábulo, shachah, destaca a expressão física da adoração. De maneira prostrada, o súdito apresentar-se-ia diante de um líder ou rei (Gn 27.29; 2 Cr 7.3; 29.29, etc). Comunica humilde submissão, enquanto a postura normal de petição era de ficar em pé, com as mãos estendidas para receber uma oferta (cf.1 Sm 1.26; 1 Rs 8.22). Diante de Deus também se elevava as mãos (Sl 28.2; Lm 2.19). A. S. Herbert, Worship in Ancient Israel, John Knox Pr., Richmond, Va., 1959, p.10.
Ver R. G. Raybum. O Come, Let Us Worship. G. Rapids, 1980, pp.23-24. R. P. Martin, Adoração na igreja Primitiva, S. Paulo (Ed. Vida Nova), 1982, p.15.
K. Hess em NDITNT, v. IV, p.454.
Ibid., p.453.
O grego dia com o genitivo deixa muito claro que sem a iniciativa divina, revelada no sacrifício de Cristo, não teríamos qualquer aceitação como “servos de Deus”.
O vocábulo logikēn corresponde ao requisito divino de ser verdadeiro adorador (Jo 4.23). Deus sempre foi inimigo inveterado da hipocrisia.
NDITNT, v. III, pp.544-547.

D. G. Mostram, The Dynamics of Intimacy with God, Tyndale Pub. House, Wheaton, 111, 1983, p.40.
Em Atos, homens como Cornélio, e talvez o eunuco etíope, e outros “prosélitos do portão” são eusebēs, “tementes a Deus” (At 10.2). “Deus é reverenciado no fato de o homem “temer” a Ele, isto é, oferecer-Lhe adoração, veneração e sacrifício” (NDITNT, vol. III, p.547). A exortação encontrada em Mq 6.8 lança luz sobre o que significa “temer” a Deus. “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus?”
NDITNT, v. IV, p.455.
Ibid., p.455.

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